O ser humano é um quadrúpede
de dois pés
(Conversas de ônibus)
Quem nasce no interior de uma cidade como Cachoeiro, numa época em que os carros eram exclusividade de poucos e quando alguém passava adoecia se pedia favor a um vizinho ou então ligava para o SAMU – Serviço Médico de Urgência que se encarregava de transportar o doente. Tempos difíceis, porém, bons tempos.
Quando me mudei para o Rio de Janeiro, no início
da década dos anos oitenta, cheguei naturalmente na cidade com aquela
mentalidade do interior, mas de início fiquei empolgado com a quantidade de
ônibus que passavam pelo Seminário do Sul do Brasil, encravado ao final da
Avenida José Higino, 416, bairro Tijuca.
Minha primeira tarefa era aprender a andar de
ônibus na cidade, considerando que os carros azuis da CTC, além de barulhentos,
os motoristas e cobradores não tinham muita paciência com os passageiros e
confessos que passei por vários apertos, além de custar entender que haviam
linhas que iam num sentido e na volta passavam por outros lugares, pois naquela
época estavam construindo a estação do metrô que chegava na praça Saens Pena.
Pode parecer loucura, mas comecei a gostar da
ideia de entrar no coletivo e sentar no cantinho, todo encolhido com medo de
assalto e ir até o final do Forte em Copacabana, apenas para conhecer as
belezas da Cidade Maravilhosa. Essa era a nossa diversão no interior: dar uma
volta de ônibus. Alguns amigos me chamam de louco por preferir andar de ônibus
até os dias de hoje.
Fui conhecendo aos poucos a cidade e tenho uma
amiga que mora na região próxima de Bangu e nos primeiros finais de semana ia
para sua casa e o trajeto era bem interessante, pois embarcava no 638, que saía
da Praça Saens Peña e dava uma volta ao mundo e duas horas depois, quando não
enfrentava engarrafamento chegava a Marechal Hermes e embarca para Bangu e lá
chegando irá para Santíssimo. Levava no mínimo três horas dentro de três
ônibus.
Não dá para deixar de
registrar que Deus sempre envia anjos que vão adiante de nós preparando os
nossos caminhos e nesse caso preciso citar uma pessoa mais que amiga,
verdadeira irmã e querida, Jorgina Ferreira Vieira da Ponte que morava com sua
família em Santíssimo. Eu a conheci dias antes de viajar para o Rio e fui
acolhido por ela todos os meus primeiros finais de semanas na Cidade
Maravilhosa. Sou grato pelo carinho e acolhida que marcaram para sempre a minha
vida.
Eu adorava, pois, cada viagem me proporcionou
uma emoção diferente, mas como nem tudo é festa: quando tinha jogo no Maracanã
a emoção era doída; as pessoas se espremiam. Era sonora, pois as cantorias das
torcidas eram vibrantes, isso sem contar com os elogios que o motorista da vez
recebia. Como não poderia deixar de ser ardida, pois o “cheiro” exalado num
coletivo “apinhado” de gente num calor de quase 40 graus, era difícil de
suportar. Isso não dá para esquecer!
Foram praticamente 15 anos rodando pelo Rio de
Janeiro de ônibus, ora morando na Ilha do Governador ou no Anil em Jacarepaguá.
Foram viagens bem interessantes, mas o que mais chamava a atenção eram as
histórias que aprendi a ouvir dos cariocas. Aliás, devo registrar que com todo
respeito aos demais estados, gosto do jeitão descolado do carioca de ser: tá
bom meu irmão; não acredito... tô indo pra lá e te levo; só se for agora. Isso
sem contar as muitas histórias que ouvia nos coletivos.
Certa vez quando morava no bairro Cacuia na Ilha
do Governador e naquela época precisava sair bem cedo de casa para embarcar no
ônibus que fazia Freguesia x Saens Pena, pois, precisa chegar bem cedo no
Colégio Batista Shepard, ouvi uma conversa entre dois homens que reclamavam da
educação das pessoas e um deles saiu com essa frase: “o ser humano é um
quadrúpede de dois pés”.
Permaneci quietinho no meu cantinho ouvindo o
desenrolar da história para entender o motivo daquela frase que saiu com um
sentimento de pesar e ele começou a explicar o que havia acontecido no dia
anterior: ele estava sentando e fez ameaçou levantar para oferecer lugar para
uma senhora que foi extremamente agressiva, dizendo coisas do tipo: não quero
sentar, não sou deficiente, não lhe pedi nada, não preciso de ajudar sua e
mesmo se eu precisasse não seria a você que me dirigiria. O homem estava
arrasado.
Fiquei divagando sozinho nos meus pensamentos: o tratamento e
respeito daquela mulher foi de um ser humano quadrúpede de dois pés, mas ainda
bem que a maioria esmagadora dos
outros humanos são educados e não precisam ser comparados aos animais e o
melhor de tudo é que você e eu, fazemos parte desse grupo.
Ainda hoje, quando retorno ao Rio, sempre gosto
de andar de ônibus. Sei que isso parece meio louco, mas é uma oportunidade de
ver a cidade a partir de um coletivo e como os tempos são outros as pessoas não
conversam com menos vontade do que nos tempos passados. Cada pessoa pega o seu
celular e viajava pelas telas e confesso que pelo fato de não ter meus reflexos
apurados como antigamente, prefiro pegar o meu livro e mergulhar na medida do
possível nas minhas leituras... mas sempre com os olhos no livro e ouvidos nas
histórias.
É isso por hoje... é vida que segue!